Mutismo Seletivo: estudo de caso com tratamento interdisciplinar

Autores: Ana Cláudia de Azevedo Peixoto1Doutorado - (Professora Adjunta 1) - Nova Iguaçu - SP - Brasil.2Correspondência:
Ana Cláudia de Azevedo Peixoto.
Instituição: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Rodovia BR 465, Km 07, s/n - Zona Rural.
Seropédica - RJ. CEP: 23890-000.
E-mail: claudiaapeixoto@gmail.com
, Andréa Lúcia Guimarães Caroli3Pós-graduação - (Psicóloga Clínica. Diretora da ABENEPI- Associação Brasileira de Neurologia, Psiquiatria Infantil e Profissões Afins- Capítulo Rio de Janeiro), Silvia Regina Mariama4Especialista em Saúde Mental na Infância e Adolescência - (Médica Psiquiatra pela ABP- Associação Brasileira de Psiquiatria. Diretora da ABENEPI- Associação Brasileira de Neurologia, Psiquiatria Infantil e Profissões Afins- Capítulo Rio de Janeiro)..
Publicado originalmente na Revista Brasileira de Terapias Cognitivas. 2017•13(1)•pp.5-11.

INTRODUÇÃO

Mutismo Seletivo (MS) refere-se a um transtorno de ansiedade (APA, 2014), caracterizado na literatura internacional como altamente resistente a qualquer tipo de tratamento, apresenta impacto negativo no desenvolvimento interpessoal e acadêmico, e quando não tratado pode evoluir para transtornos mais graves. Trata-se de um distúrbio que designa crianças que decidem não falar com algumas pessoas, inclusive do círculo familiar. Alguns ambientes públicos são temidos por essas crianças, principalmente o espaço escolar, provavelmente, por tratar-se de um local onde existe a expectativa de que a criança se expresse verbalmente. Importante ressaltar que, a despeito de, não manifestarem a fala com algumas pessoas, essas crianças apresentam desenvolvimento lingüístico apropriado para a idade, se comunicando de forma adequada com pessoas próximas. É um transtorno raro, com prevalência encontrada em menos de 1% da população, sendo sua incidência maior no sexo feminino, com idade de manifestação maior a partir dos três anos de idade, fase do início da vida escolar (APA, 2014; Black & Uhde, 1992; Gutenbrunner, Hennighausen, Herpertz--Dahlmann, Poller & Remschmidt, 2001; Peixoto & Zanelli, 2014).

O MS foi descrito na literatura desde 1877, por Kussmaul, um médico alemão, que odescreveu como afasia voluntária. Seria um fracasso manifestado por crianças ao tentar falar em determinadas situações, mesmo tendo uma linguagem já desenvolvida (Kron, Weckstein & Wright, 1999). Vinte anos mais tarde Treuper, em 1897, relatou o problema como inibição da fala. Até que em 1934, o psiquiatra Morris Tramer, utilizou pela primeira vez o termo mutismo eletivo para relatar um caso clínico atendido por ele. Segundo ele, o termo “eletivo” designava crianças que selecionavam lugares e pessoas para não falar (Krolian, 1999). Este termo foi utilizado até a publicação do DSM-III (APA, 1987), sendo substituído por mutismo seletivo no DSM-IV (APA, 1994). “Seletivo”, tal como o termo indica, enfatiza que o transtorno é seletivamente dependente do contexto social (Gutenbrunner et al., 2001). No DSM-IV (APA, 1994), o MS também foi indicado como um transtorno específico da infância e adolescência. Nos anos que se seguiram entre a publicação do DSM-IV e DSM-5, alguns artigos publicados sobre a problemática, indicaram características clínicas similares entre os sintomas apresentados pelo MS e a ansiedade social (Muris & Ollendick, 2015;Young, Bunnell, Brian & Beidel, 2012). No estudo realizado por Peixoto (2006), em uma amostra brasileira, crianças portadoras de MS apresentavam critérios diagnósticos para fobia social, corroborando a relação entre o MS e a fobia social, especificamente, na manifestação dos sintomas da dificuldade de falar em público, nas interações sociais específicas na escola, em iniciar e manter conversas, para participar de atividades em pequenos grupos, falar com autoridades, ir ao banheiro, freqüentar festas, tirar fotos, etc.

De acordo com as últimas publicações internacionais a respeito do MS, na edição do DSM-5 (APA, 2014), o MS foi definido como um transtorno de ansiedade social, e os critérios para o diagnóstico do MS, indicados, são: A. Fracasso persistente em falar em situações sociais específicas (nas quais existe a expectativa para falar, por exemplo, na escola), apesar de falar em outras situações. B. A perturbação interfere na realização educacional ou ocupacional ou na comunicação social. C. A duração da perturbação é de no mínimo um mês (não limitada ao primeiro mês de escolarização). É aparentemente raro, sendo encontrado em menos de 1% dos indivíduos vistos em contextos de saúde mental. D. O fracasso em falar não se deve a uma falta de conhecimento ou desconforto com a linguagem falada exigida pela situação social. E. O Mutismo Seletivo deve ser diferenciado das perturbações da fala, melhor explicadas por um Transtorno da Comunicação, como Transtorno Fonológico, Transtorno da Linguagem Expressiva ou Transtorno Misto da Linguagem Receptivo Expressivo ou Tartamudez, nem ocorre exclusivamente durante o curso de um Transtorno Invasivo do Desenvolvimento, Esquizofrenia ou outro Transtorno Psicótico.

Apesar do DSM-5 (APA, 2014) especificar os critérios para o diagnóstico do MS, observa-se que ainda é bastante complexo avaliar um quadro que especifique esse transtorno, dificultando muitas vezes o diagnóstico por profissionais e familiares, devido às diferentes formas de manifestação do transtorno. A complexidade para o diagnóstico se deve ao fato dos mutistas apresentarem uma grande variação na forma de manifestação comportamental. Para facilitar o diagnóstico, Rodríguez, Alcázar e Olivares (2007), propuseram uma forma de sistematização na classificação do MS. Para eles, as manifestações do MS podem ser observadas nas seguintes áreas: a) motora – as crianças portadoras do MS apresentam isolamento social, gerando evitação social; utilizam modos de comunicação alternativos (gestos, cochichos no ouvido, respostas monossilábicas, movimentos com a cabeça e escritas para fazer pedidos ou emitir respostas); se mostram controladoras e negativistas em ambiente familiar; b) psicofisiológicas: apresentam respostas psicofisiológicas relacionadas com respostas de ansiedade diante de estímulos relacionados com a avaliação de exposição, por exemplo: em aulas como as de educação física, dança, música, apresentações teatrais em festas escolares. C) cognitiva: nesta esfera, observa-se que as respostas podem acontecer antes e depois das situações temidas e interpretadas como aversivas pelas crianças, geralmente estão relacionadas com pensamentos associados diretamente com as expectativas sobre as conseqüências de se expor socialmente através da fala, gerando as respostas de fuga ou evitação, que por sua vez reforçam o mutismo.

Relacionado às interpretações negativas apresentados pelos mutistas, encontram-se as emoções ativadas por tais pensamentos. Observamos em atendimentos com tais pacientes que as duas principais emoções relatadas por eles são: o medo e a vergonha. O medo é uma emoção primária e está relacionado com o desenvolvimento da ansiedade. Trata-se da antecipação de respostas negativas e catastróficas relacionadas com a exposição. A vergonha é uma emoção secundária, denominada autoconsciente evocada pela auto-reflexão e auto-avaliação diante de situações vividas socialmente. A vergonha implica uma avaliação global negativa do self, provocando uma sensação dolorosa, sendo acompanhada por um sentimento de desvalorização e impotência. Isso explica, em parte, os comportamentos de fuga e esquiva ativados em portadores de MS, e a diminuição do senso de auto-eficácia para a realização de muitas atividades observadas nessas crianças.

Ao se avaliar a etiologia do MS, os estudos realizados com familiares, revelam que não há relação de evento traumático como fator predisponente para a manifestação do MS, sendo o transtorno melhor explicado, pela combinação entre fatores genéticos, questões ambientais determinando a aprendizagem de modelos comportamentais disfuncionais e pelo temperamento (Deliberou & Kearney, 2016; Peixoto, 2006).

O temperamento tímido e retraído são características marcantes na personalidade dessas crianças (Kumpulainen, Räsaänem, Raaska & Somppi, 1998; Peixoto, 2006; Muris, Hendriks & Bot, 2016). Segundo Lara (2009, pg. 15), “o temperamento está ligado a sensações e motivações básicas e automáticas da pessoa no âmbito emocional. É herdado geneticamente e regulado biologicamente e pode ser observado nos primeiros anos de vida”. Em muitos estudos analisando crianças com o MS, obtiveram-se altos escores para problemas internalizantes em relação aos externalizantes1, no questionário padronizado do checklist do comportamento infantil (CBCL) (Peixoto, 2006; Steinhausen & Juzi, 1996; Ford, Sladeckek, Carlson & Kratochwill, 1998). O pesquisador Kristensen (2001) descreveu que os sintomas internalizantes presumem que a recusa em falar ocorre por causa da alta ansiedade face à exigência da exposição.

Sobre as variáveis ambientais presume-se que os pais sejam os primeiros grandes modelos de comportamentos sociais dos filhos. Segundo Del Prette, A. e Del Prette, Z. (2005), a vida familiar se estrutura em uma espécie de economia de relações interpessoais com demandas interativas variadas, que constituem ocasiões para o exercício da competência social. Com o tempo a criança vai se ajustando aos comportamentos desejáveis, através de normas e dos sistemas de valores que a família possui. Nos primeiros anos de vida, as crianças tendem a imitar o comportamento de seus pais, inclusive o padrão emocional. No caso de os pais apresentarem um repertório de habilidades sociais inadequado, isso pode gerar problemas na adaptação social da criança. Pais muito ansiosos, medrosos ou tímidos podem transmitir essa forma de comportamento por meio de modelação. Sabe-se, atualmente, que o ambiente altera expressão do gem através das primeiras experiências. Alguns estudos evidenciaram um alto nível de psicopatologias e desordens de personalidade em familiares de crianças mudas seletivamente (Kolvin & Fundudis, 1981; Alyanak, et al. 2013; Peixoto, 2006; 2014). Segundo Rodríguez et al. (2007), o estilo educativo adotado na relação com as crianças portadoras de MS tem sido demonstrado como um fator de risco para aumentar a vulnerabilidade ao desenvolvimento do mutismo. Alguns estudos relatam que ela pode ser classificada como insuficiente ou empobrecida (Gutenbrunner, et al., 2001). Esse estilo se caracterizaria, principalmente, pelo emprego do reforço negativo, superproteção, e autoritarismo que reforça erros e falhas no comportamento das crianças. Essas análises corroboram com a ideia de tratamentos que levem em conta a participação ativa da família no processo de avaliação e intervenção terapêutica (Shriver, Segool & Gortmaker, 2011).

MÉTODO: Participante e histórico desenvolvimental

O relato de atendimento do caso refere-se a uma menina, aqui denominada de G., moradora na cidade do Rio de Janeiro, cuja anamnese realizada com a mãe, revelou como queixa principal que a filha não se expressava oralmente com as pessoas da escola, apesar de brincar normalmente nesse ambiente. Outras características relatadas, foram: a filha falava com alguns parentes próximos, se recusava a participar de atividades extracurriculares, não tirava fotos, não demonstrava iniciativa para interagir ou solucionar problemas e evitava qualquer tipo de exposição.

Aos dois anos G. foi para primeira escola, onde aos três anos aproximadamente, a família foi informada que a filha passou a não falar com a professora e pouco interagia com os pares. Mudou em seguida para outra escola onde teve uma adaptação fácil apesar de não falar com os professores, funcionários e pares da escola.

Aos quatro anos de idade foi diagnosticada como portadora de MS pela psicóloga e inicia o primeiro tratamento, que perdurou por dois anos com uma freqüência de uma a duas vezes por semana, mas sem progresso significativo em termos da aquisição da fala, melhora da vergonha ou do comportamento de fuga das situações sociais. A família não soube informar a linha terapêutica seguida nesse tratamento.

Em seguida, aos seis anos, inicia o segundo tratamento, cuja abordagem terapêutica não foi informada, que durou aproximadamente um ano, mas sem resultados de melhora no comportamento, sendo orientado aos pais que se tratava de teimosia, birra e que os pais deveriam forçar a filha a falar. O tratamento é interrompido e G. passa um período sem intervenção terapêutica, devido à descrença da família no tratamento ou possibilidade de melhorado quadro.

MÉTODO: Avaliação inicial

Com oito anos e três meses G. iniciou o tratamento em questão, com a periodicidade de um atendimento semanal, de sessenta minutos em média de duração, com interrupção nos períodos de férias escolares, baseado nos pressupostos da terapia cognitivo-comportamental.

O início do tratamento, caracterizou-se por um processo de conceitualização do caso, que teve a duração de quatro semanas, este processo abarcou: entrevista de anamnese da história pregressa da paciente e de seus familiares com a mãe, reunião com a orientadora educacional do Núcleo Psicopedagógico do Fundamental I e com a professora da escola, bem como quatros sessões com a paciente no consultório. Após o levantamento das informações e observações clínicas realizadas pela terapeuta, foi possível elaborar uma análise funcional, que incluiu, investigação do temperamento, tipos e formas de vínculos afetivos, análise de prontidão para o engajamento na terapia, levantamento dos aspectos emocionais e comportamentais pré-estabelecidos, internalizados e reforçados. Foram utilizados como parte da avaliação e delineamento do padrão de funcionamento de G., os seguintes instrumentos: Child Behavior Ckecklist (CBCL) (Wielewicki-Gallo & Grossi, 2011) - para os pais; Teacher’s Report Form for ages 6-18 (TRF/6-18) (Fonseca, Simões, Rebelo, Ferreira & Cardoso, 1995)- para o professor; o Inventário de Ansiedade Traço-Estado (IDATE-C) (Spielberger, 2002)- respondido pela paciente. A análise abarcoua investigação dos eventos, situações desencadeantes, pensamentos e sentimentos disfuncionais, sistemas de significados (crenças), autoimagem e autoestima, e contexto familiar/ social. Estas informações foram fundamentais para construção do ponto de partida e delineamento do passo a passo do tratamento.

As primeiras sessões revelaram que G. apresentava os critérios diagnósticos para o transtorno do Mutismo Seletivo, com características de temperamento bastante significativas, como: inibição, vergonha, teimosia, timidez, negativismo, perfeccionismo, evitação social e rigidez. Nas sessões iniciais com a terapeuta, G. estabeleceu vínculo muito reduzido, quase sem contato visual, o rosto normalmente encoberto pelos cabelos e um comportamento muito tímido. Demonstrou padrões rígidos e adaptados de comportamento, pouca flexibilidade, baixa iniciativa a resolução de problemas, uma visão negativa do self, pouca tolerância a frustração tendo dificuldade de perder diante de situações desafiadoras ou mesmo numa brincadeira e demonstrava-se competitiva ficando extremamente feliz e gratificada quando vencia num jogo. G. interpretava e atribuía significado ameaçador e extremamente negativo nas interações sociais, levando-a a evitar contato com outras pessoas fora do seu núcleo familiar e ficar paralisada diante da possibilidade de comunicação verbal com essas pessoas.

MÉTODO: Intervenção terapêutica e evolução do tratamento

G. apresentou muita resistência inicial a qualquer proposta, esquivando-se de fazer referência as emoções ou as questões pertinentes ao seu comportamento, retraindo-se ainda mais. Durante os quatro meses iniciais de tratamento, com o objetivo de construir um ambiente terapêutico seguro e formarem um vínculo terapêutico, foram introduzidas e escolhidas atividades lúdicas com pouca exigência de comunicação verbal, mas com estímulos para a interação interpessoal. Sua comunicação e expressão ocorriam através da escrita no papel, onde pouco a pouco começou a relatar seu dia a dia, acontecimentos na escola e sua dinâmica familiar. G. participava ativamente das propostas de atividades lúdicas, sendo introduzidos, durante essas sessões, momentos de relaxamento, com objetivo de ensinar a paciente o manejo da ansiedade. Foram utilizadas técnicas de relaxamento, como: puxar o ar lentamente, em seguida segurá-lo contando até cinco, depois deixar o ar sair lentamente; soprar bolinhas de sabão; respiração com contração de grupos musculares, tencionando por cinco segundos e em seguida relaxando.

Após oito meses de completo mutismo durante as sessões, G. demonstrou mudanças no comportamento não-verbal. Foi capaz de sorrir, sua expressão tornou-se menos tensa, mais afetuosa, o contato visual foi ampliado e demonstrava nessa fase que havia construído um vínculo afetivo, fato esse que possibilitou a redução considerável do desconforto e da ansiedade na presença da terapeuta. Com essas conquistas foi possível o uso mais direcionado de técnicas da Terapia cognitivo-comportamental usualmente utilizadas para o enfrentamento e manejo dos sintomas relacionados ao MS. Ainda sem expressão verbal G. conseguiu através de uma sessão com Bolinhas de Sabão, reconhecer e descrever situações que geravam ansiedade, como medo de ficar sozinha em casa e medo de falar com as pessoas. A proposta era construir uma hierarquia de medos, colocando dentro da bolinha de sabão pequena uma situação que gerasse um medo pequeno, em seguida médio, grande, até o mais intolerável medo. No momento da bola grande G. demonstrou angustia e alívio por enfim poder revelar seu medo de falar com as pessoas, como ainda não se expressava oralmente, utilizou folha e lápis para registrar as situações temidas. Há uma metáfora interessante nessa proposta na medida em que os medos que são colocados dentro da bolha de sabão, eles crescem, flutuam e depois se desfazem no ar. Após o reconhecimento das emoções e identificação da situação ansiogênica, o processo terapêutico evoluiu para técnicas de enfrentamento, uso de formas adaptativas de lidar com os sintomas do MS e o manejo comportamental.

Na medida em que o processo terapêutico avançou a fala foi gradativamente surgindo, até conseguir se comunicar plenamente com a terapeuta. Técnicas de manejo dos sintomas do MS foram introduzidas e serão relatadas nos parágrafos seguintes.

Foram realizadas três sessões na residência de G., por ser um contexto onde ela falava normalmente, um ambiente de seu domínio e conseqüentemente de ansiedade reduzida, que possibilitava interação numa situação mais favorável e confortável para ela. Esses atendimentos domiciliares foram fundamentais nesse processo, sendo o local onde as primeiras palavras surgiram.

A técnica de Modelagem cuja valência afetiva é de extrema importância para modificação de comportamentos-problemas, caracteriza-se na observação e imitação de comportamentos e habilidades desejadas. A terapeuta fazia gestos e movimentos como abrir, fechar a boca, bocejos, rir, soprar, mímicas, que eram repetidos por G. que aos poucos foi se expressando corporalmente sem inibição.

G. tinha uma avaliação muito negativa de si, afirmando ter uma voz muito feia e que todos iriam olhá-la e rirem dela quando falasse. Foi introduzida a técnica de Modelação que foi combinada com a Modelagem, onde inicialmente se imitava sons de objetos e de animais e em seguida a resposta desejada era reforçada. Foram realizadas diversas gravações da voz da terapeuta e de G. sendo em seguida reestruturada a crença negativa de que sua voz era feia ou estranha. A introdução da modelação ao tratamento de crianças com MS tem sido relatada como uma ferramenta muito potente para aumentar a frequência da fala (Kehle, et al., 2012).

Foi incorporado ao tratamento o uso da tecnologia de um aplicativo da AppStore, chamado Musical.ly (in Wikipedia). Trata-se de um sistema operacional de rede social para criação de vídeos, mensagens e transmissão ao vivo, onde é possível adicionar som ou músicas, imitando ou representando a música ou fala de alguém, sem que a pessoa use sua própria voz.G. já produziu dezenas de vídeos que foram postados e curtidos por seus seguidores, o que facilitou a elevação de sua autoestima.

Na medida em que G. demonstrava mais conforto e desejo de se comunicar com os amigos, estratégias de iniciar e manter uma conversa, foram introduzidos como forma de melhorar as habilidades sociais. Foram trabalhadas questões como: quais locais e situações permitiam mais segurança para iniciar uma fala, mesmo que inicialmente através de cochicho, como responder a determinadas perguntas, aprender a lidar melhor com as críticas e os elogios, suportar a frustração, buscar reciprocidade nas relações, expressividade emocional e resolver os problemas de forma produtiva. Nosetting terapêutico foi realizada uma lista das amigas na qual G. se sentia mais confortável para se expressar verbalmente dentro do ambiente escolar. Inicialmente, só conseguiu falar por cochicho, dentro do banheiro ou em locais reservados da escola. Como passo seguinte, ela passou a falar por cochicho no pátio da escola, na entrada ou no recreio, não necessitando mais de estar num ambiente fechado ou reservado para tal. O treino de habilidades sociais envolveu instruções, modelagem, modelação, treino comportamental e reforço positivo, sendo crucial para o início da fala com as amigas da escola.

G. já falava plenamente com a terapeuta e tendo um vínculo bem estabelecido. A partir dessa situação ideal, com um ano e um mês de tratamento, traçou-se um plano junto com a paciente para introduzir no processo as amigas. Foram utilizadas como referência as mesmas amigas na qual ela já se comunicava por cochicho na escola, para que estas participassem das sessões terapêuticas. Empregando-se a técnica de desvanecimento do estímulo, após duas sessões, G. conseguiu se expressar oralmente de forma plena com uma amiga dentro da sessão terapêutica. Para treinar a habilidade na utilização dessa técnica, amigas foram convidadas para sua casa com objetivo de iniciar a fala com amigas que não falava anteriormente, tornando-se espontâneo falar com as amigas fora do contexto escolar.

No final do segundo bimestre do 6.º ano letivo, a técnica do desvanecimento do estímulo, também foi introduzida no processo terapêutico com o professor de ciências. Foram necessárias três sessões para que G. iniciasse a comunicação verbal com o mesmo dentro de sala de aula por cochicho, e logo depois começou a falar normalmente com ele dentro e fora do ambiente escolar.

Concomitantemente as sessões com a paciente, foram realizadas algumas sessões com os pais e familiares próximos, incluindo aqueles com que G. não falava, com a proposta psicoeducativa de trazer informações a respeito do MS através de textos explicativos, vídeos e literatura específica. Também se objetivou: levantar todos os comportamentos-problemas; sinalizar os reforçadores que contribuíam para manutenção do padrão comportamental do MS; identificar as crenças e as expectativas diante do tratamento; dar orientações de manejos diários; modificar padrões disfuncionais; orientar a importância de se reforçar e elogiar positivamente a iniciativa e os pequenos avanços e informar de todos os passos que eram seguidos no tratamento. As informações, orientações e aprendizado a respeito da dinâmica do transtorno possibilitaram um processo de mudança fundamental para superação do MS. A família buscou não mais forçar G. a responder ou retribuir carícias e beijos, tanto com os familiares que ela não falava, quanto com estranhos; procuraram não responder por ela; começaram a pontuar de forma positiva que G. era capaz de falar; passaram as orientações de manejo e conhecimento sobre o MS para demais pessoas do convívio diário ou professores das atividades extracurriculares.

A mesma proposta de psicoeducação foi introduzida e aplicada com a escola. Inicialmente com indicações para a coordenação e professores, utilizando-se das estratégias já pontuadas no parágrafo anterior, e ampliando para o manejo com os demais alunos.Algumas orientações oferecidas para escola foram: o objetivo inicial não devia ser que ela falasse, mas sim que se sentisse confortável o suficiente para num segundo momento falar; tinham que ter o cuidado para não colocá-la no centro das atenções ou em evidência; deveriam dar estímulos para que ela manejasse seus sintomas angustiantes; observar para não permitir que os demais colegas a intimidassem, rissem ou falassem por ela; a forma como o professor deveria lidar com a situação iria servir de modelo para os demais alunos; identificar os amigos de maior vínculo; exposição gradual da fala junto aos pares e professores; identificar situações que geram muita ansiedade; encontrar formas diversificadas de participação da aluna com o uso de recursos alternativos para exposição da fala; colocar a aluna em grupos pequenos para trabalhos em sala de aula; reforçar qualquer tentativa de enfrentamento da problemática, ampliando as exigências de acordo com os progressos; procurar iniciar conversas fora do contexto de sala de aula e aumentar a autonomia da aluna dentro do ambiente escolar.

Após algum tempo, coletamos informações que algumas sugestões foram executadas, tais como: diminuição da utilização de reforço negativo pelos colegas (ex. que respondessem por ela) e participação em grupos pequenos e com amigos de maior vínculo afetivo. No entanto, ainda ocorreram situações na qual a aluna deixou de pontuar por não conseguir cumprir a meta de exposição oral de um trabalho, o que em seguida foi contornado pela escola.

Durante o 5º ano do Ensino Fundamental I, verificou-se uma diminuição no rendimento escolar de G., este resultado motivou a terapeuta em parceria com a escola e com autorização da família, a apresentar o caso ao conselho de classe dos professores do 6º ano do Fundamental II, levando em conta que o desafio do ano seguinte seria infinitamente maior diante do aumento do número de professores na grade curricular e da própria demanda da dinâmica, que seria mais interativa e com maior exposição de trabalhos orais no grupo. Nesta reunião foram discutidas propostas e diversas alternativas de avaliação incluindo o uso de comunicação por chat online, grupos de WhatsApp, onde ela responderia por mensagens de voz e/ou vídeos, de forma que a aluna pudesse interagir à distância e depois de forma mais direta. A reunião possibilitou para o caso, além do estudo de propostas alternativas para a comunicação, o engajamento maior de um professor da equipe.

Paralelamente, após quatro meses do início do tratamento psicológico, G. iniciou um acompanhamento psiquiátrico, fazendo uso da medicação antidepressiva, Escitalopram na (antidepressivo ISRS - inibidor seletivo da recaptação da serotonina) - dosagem de 5mg dia. Passados dois anos aproximadamente G. muda de psiquiatra, na primeira consulta com a nova psiquiatra G. foi acompanhada da mãe que contou toda a história, relatou que naquele momento a paciente falava com poucas pessoas da família, alguns colegas da escola, tendo prejuízo social e acadêmico. Durante a consulta apresentou comportamento de esquiva, mantendo-se agarrada à mãe, também demonstrou estar envergonhada. Segundo a psiquiatra em seu comportamento não-verbal exibia rosto para baixo, sem contato visual durante as consultas, interagindo pouco e sem nenhuma fala. Após avaliação psiquiátrica, a mesma decidiu manter a medicação, apenas aumentando-se a dose para 10 mg de Escitalopram, classe de antidepressivos indicados para quadros de ansiedade e depressão na dose mínima recomendada. Optou-se pela manutenção desse fármaco em função das respostas para Transtornos de Ansiedade, visto que o Mutismo Seletivo se insere nos transtornos de Ansiedade Social. As consultas com a psiquiatra foram realizadas em conjunto com a G, responsáveis e a babá, e foi possível observar que a família da paciente oferecia afeto e apoio para sua mudança.

RESULTADOS

Com o ajuste da medicação, maior engajamento de trocas entre os profissionais envolvidos e o desenvolvimento da terapia, a paciente apresentou uma evolução em relação ao quadro do mutismo, diminuindo o comportamento da timidez, da ansiedade antecipatória e do comportamento de esquiva frente às situações sociais.

Após a evolução do quadro, a proposta terapêutica foi direcionada para as demandas e conflitos interpessoais no âmbito dos pares ou em termos de questões intrafamiliar. G. se coloca de forma mais proativa, expressa com clareza suas emoções, consegue ouvir uma crítica ou elogio, no ambiente escolar e nas situações de interação social, de forma produtiva, busca junto com a terapeuta formas de mediar os conflitos dentro da escola e com os familiares. Apresenta descontração de uma forma geral, observa-se uma diminuição do quadro de inibição, demonstra mais alegria e espontaneidade, parece não se intimidar com exposições, se exibi através de vídeos e fotos, indicando maior contentamento e segurança consigo mesma e com os ambientes em que circula. Fala com a terapeuta, mesmo na presença de estranhos dentro do ambiente terapêutico. Apresenta uma visão mais positiva de si, sabe lidar com possíveis críticas e comentários negativos dos outros sobre ela, seus relacionamentos interpessoais têm mais qualidade, sendo capaz de responder ativamente, não necessitando que o outro o faça, consegue se defender e expõe sua opinião sem ser impositiva. Na maioria das vezes diante de amigos novos G. fala plenamente, vem ampliando a comunicação verbal com parentes próximos; como primos, amigos da escola e nas atividades extracurriculares.

Dentro do ambiente escolar, após as três sessões realizadas como o professor no espaço terapêutico, G. passou a responder às perguntas feitas em classe no ouvido do mesmo, arriscava movimentos com os lábios para responder da sua carteira e nas demais aulas não deixava de responder as perguntas, mas ainda o fazia através dos amigos.

Nas consultas psiquiátricas G. interage de forma positiva, demonstrando estar segura e tranquila, aceita ser beijada, abraçada, e retribui os estímulos de forma afetuosa. Fala em cochicho com os responsáveis durante os atendimentos, utilizando um padrão de comunicação afetiva, comportamental e interpessoal mais positiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como descrito anteriormente, o estilo educativo utilizado dentro e fora do ambiente familiar, que normalmente utiliza emprego de reforço negativo, superproteção e autoritarismo, reforça erros e mantém falhas no comportamento das crianças, demonstrando ser um fator de risco para aumentar o mutismo seletivo.

Este estudo de caso trouxe evidências de que o tratamento com uma proposta de interação entre os agentes sociais desde o processo de avaliação terapêutica até a intervenção, pode ser crucial para a mudança de comportamento do paciente.

Completados três anos e oito meses de tratamento, no início deste ano e G. foi matriculada em outra escola e diante de um ambiente totalmente novo, a mesma demonstrou ter superado sentimentos como o medo e a vergonha, e logo no primeiro dia de aula se apresentou verbalmente para os novos colegas e professores. Também ampliou o número de pessoas com as quais fala espontaneamente e tem conseguido iniciar conversas com algumas pessoas novas ao círculo familiar. Estes comportamentos revelam que diante de situações de interação social e outros estressores, sua ansiedade está mais controlada, possibilitando o rompimento com o silêncio. Tal resultado corrobora com estudos internacionais indicando que os tratamentos mais eficazes para o mutismo seletivo estão baseados na terapia cognitivo-comportamental, inserindo o ambiente familiar e escolar da criança / adolescente no delineamento desde a avaliação até a intervenção terapêutica.

Para finalizar, o tratamento psicoterápico e o acompanhamento psiquiátrico de G. permanecem em curso apesar da evolução significativa do caso.


BIBLIOGRAFIA

American Psychiatric Association. (1987). Manual Diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (4ª ed). Porto Alegre: Artmed.

American Psychiatric Association. (1994). Manual Diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (3ª ed). Porto Alegre: Artmed.

American Psychiatric Association. (2014). Manual Diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (5ª ed). Porto Alegre: Artmed.

Alyanak, B., Kılınçaslan, A., Harmancı, H. S. Demirkaya, S. K., Yurtbay, T., & Vehid, H. E.(2013). Parental adjustment, parenting attitudes and emotional and behavioral problems in children with selective mutism. Journal Anxiety Disorder, 27(1), 9-15. doi:10.1016/ j.janxdis.2012.10.001

Black, B., & Uhde, T. W. (1992). Elective mutism as a variant of social phobia. Journal American Academic Child Adolescent Psychiatry, 31(6), 1090-1094.

Del Prette, A., & Del Prette, Z. A. P. (2005). Psicologia das habilidades sociais na infância. Rio de Janeiro: Editora Vozes.

Diliberto, R. A., & Kearney, C. A. (2016). Anxiety and oppositional behavior profiles among youth with selective mutism. Journal of Communication Disorders, 59,16-23.doi: 10.1016/j.jcomdis.2015.11.001

Fonseca, A. C., Simões, A., Rebelo, J. A., Ferreira, J. A. A., & Cardoso, F. (1995). O Inventário de Comportamento da Criança para Professores: Teachers Report Form (TRF). Revista Portuguesa de Pedagogia, 29(2), 81-102.

Ford, M. A., Sladecek, I. E., Carlson, J., & Kratochwill, T. R. (1998). Selective mutism: phenomenological characteristics. School Psychology Quartely, 13,192-227.

Gutenbrunner, C., Hennighausen, K., Herpertz-Dahlmann, B. Poller, M., Remschmidt, H. (2001). A follow-up study of 45 patients with elective mutism. Eur Arch Psychiatry ClinNeurosci, 251, 284-269.

Kehle, T. J., Bray, M. A., Byer - Alcorace, Gabriel F., Theodore, L. A., & Kovac, L. M. (2012). Augmented Self-Modeling as an Intervention for Selective Mutism. Psychology in the School, 49, 93-103.

Kolvin, I., & Fundudis, T. (1981). Elective mute children: psychological development and background factors. Journal Child Psychoogical Psychiatry, 22(3), 219-232.

Kristensen, H. (2001). Multiple informants’ report of emotional and behavioral problems in a nation-wide sample of selective mute children and controls. European Child & Adolescent Psychiatry, 10, 135-142.

Krohn, D. D.,Weckstein, S. M., & Wright, H. L. (1999). Elective mutism. In: Schaefer, C. E., & Sapsaro, S. A (Eds.), Refusal to speak (Cap. 15, pp. 233-264). New Jersey: Aronson.

Krolian, E. B. (1999). Speech in silvern, but silence is golden: day hospital treatment of two electively mute children. In: Schaefer, C. E., & Spasaro, S. A. (Eds.), Refusal to speak (Cap. 16, pp. 265-295). New Jersey: Aronson.

Kumpulainem, K., Räsänem, E., Raaska, H., & Somppi, V. (1998). Selective mutism among second-graders in elementary school. Europe na Child & Adolescent Psychiatry, 7, 24-29.

Lara D. (2009). Temperamento forte e bipolaridade. Dominando os altos e baixos do humor (p.15). São Paulo: Saraiva.

Musical.ly (2017, 24 de setembro). Wikipédia: a enciclopédia livre. Recuperado de https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Musical.ly.

Muris, P., & Ollendick, T. (2015). Children who areanxious in silence: Areview on selective mutism, the new anxiety disorder in DSM-5. Clinical Child and Family Psychology Review, 18(2), 151-169. doi:10.1007/s10567-015-0181-y

Muris, P., Hendriks, E. & Bot, S. (2016). Children of few words: relations among selective mutism, behavioral inhibition, and (social) anxiety symptoms in 3- to 6-year-olds. Child Psychiatry & Human Development, 47(1), 94-101. doi:10.1007/s10578-015-0547-x

Peixoto, A. C. A. (2006). Mutismo Seletivo: Prevalência, características associadas e tratamento cognitivo-comportamental (Tese de Doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Recuperado de http://livros01.livrosgratis. com.br/cp023820.pdf.

Peixoto, A. C. A. & Zanelli. P. B. B. (2014). Mutismo Seletivo e sua relação com as habilidades e competências sociais.In: Campos, L. (Org.), Resiliência e Habilidades Sociais (Cap. 06, pp. 129-154). Curitiba: Appris.

Rodríguez, J. O., Alcázar, A. I. R. & Olivares, P. J. (2007). Tratamiento psicológico del mutismo selective. Madrid: Pirámide.

Shriver, M. D., Segool, N. & Gortmaker, V. (2011). Behavior observations for linking assessment to treatment for selective mutism. Education and Treatment of Children, 34(3), 389-411. doi:10.1353/etc.2011.0023

Spielberger, C. D. (2002). Idate-C Inventário de ansiedade traço-estado Formas C-I e C-II. (Tradução e adaptação de Biaggio, A.). Rio de Janeiro: Centro Editor de Psicologia Aplicada LTDA (CEPA).

Steinhausen, H., & Juzi, C. (1996). Elective mutism: an analysis of 100 cases. Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, 35, 606-614.

Wielewicki, A., Gallo, A. E., & Grossi, R. (2011). Instrumentos na prática clínica: CBCL como facilitador da análise funcional e do planejamento da intervenção. Temas em Psicologia, 19(2), 513-523.

Young, B. J., Bunnell, B. E., & Beidel, D. C. (2012). Evaluation of Children With Selective Mutism and Social Phobia: A comparison of psychological and psychophisiological arousal. Behavior Modification, 36(4), 525-544. doi:10.1177/0145445512443980